por Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro
A possibilidade de uma redução drástica da população humana sobre o planeta – atualmente estimada em 7 bilhões e 900 milhões de animais humanos – está no horizonte de nossos tempos e marca toda uma série de produções culturais e intelectuais assombradas pelo espectro da extinção.
Seja por uma invasão alienígena seguida por uma Guerra dos Mundos, seja pelo choque da Lua ou do planeta Melancolia com nossa casa comum, seja por radicais transformações climáticas ou hecatombes ambientais, seja pela transformação de nossos organismos no rumo da infertilidade e da “morte do nascimento” [death of birth], o ocaso da aventura humana na Terra aparece com frequência crescente em nossos filmes-catástrofe.
Exemplos recentes incluem Snowpiercer: O Expresso do Amanhã (Bong Joon-Ho) e Children of Men: Filhos da Esperança (Alfonso Cuarón). Em intelectuais como Franco ‘Bifo’ Berardi (publicado pela Ed. Ubu) ou David Wallace-Wells assoma também a figura de uma Terra Inabitável, para citar o nome do livro magistral e horripilante de não-ficção em que este último autor propõe “uma história do futuro” (Ed. Cia das Letras).
Por mais assustador que seja para nós, ao fim do primeiro semestre de 2022, digerir o fato de que a pandemia de covid19 já matou mais de 6 milhões e 300 mil humanos no planeta, há algo ainda mais assustador: talvez o grande morticínio viral do século 21 ainda esteja por vir. Por mais que a covid19 tenha gerado uma crise sanitária e econômica global que transtornou brutalmente as nações do globo, é provável que não seja esta ainda the big one, a grande gripe, o morticínio de fato colossal.
Por isso Aeon Flux, a série animada (que estreou em 1991) e o filme (lançado em 2006) merecem ganhar um imprevisto e inusitado revival em nossos tempos. Aeon Flux é uma das obras sci-fi que colocou de maneira mais concreta a imagem de um futuro mundo – daqui a aproximadamente 4 séculos – onde a viralização de um certo patógeno quase aniquila o conjunto da “raça humana”. Debate-se ali a ambiguidade de uma Ciência que não é salvífica nem demoníaca: esta pode até criar uma vacina, mas no enredo esta vacina revela ter efeitos colaterais graves, como a produção da infertilidade feminina, o que por sua exige uma nova intervenção tecno-científica, como a clonagem de seres humanos, o que por sua vez causa uma cascata de outros efeitos colaterais…
Tal hipótese, lançada ao horizonte artístico, de uma mega-aniquilação das vidas humanas por um vírus desgovernado, está hoje assombrando a obra de pensadores importantes como o italiano Franco Berardi, vulgo “Bifo”, e um de seus discípulos maiores, o falecido Mark Fisher. Penso que há motivos de sobra para re-inserirmos um debate sobre Aeon Flux no contexto da década corrente, de 2020, onde ainda parece ser verdade que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo” e onde déspotas pseudo-eleitos como Trump e Bolsonaro tornaram-se os insalubres agentes da disseminação viral, produzindo genocídios nos EUA e no Brasil através de seus terraplanismos sanitários e desinformações deliberadas.
Dirigido por Karyn Kosama (em seu segundo filme, após haver estreado com Girl Fight), e contando com atuações de atrizes estelares como Charlize Theron (Monster, O Advogado do Diabo) e Frances McDorman (Fargo), o filme Aeon Flux é frequentemente lido como uma flopada monumental. O filme não foi bem nas bilheterias (deu prejuízo!) e foi pessimamente recebido pela crítica: no site do Rotten Tomatoes, que calcula a “qualidade” dos filmes como se fossem tomates e julga se estes estão fresh (frescos) ou rotten (podres), a obra tirou uma nota baixíssima, podrérrima, de apenas 9% (se fosse uma nota escolar de 0 a 10, o filme teria tirado 0,9 segundo o cálculo deste site que avalia as obras a partir das críticas publicadas na Web). Já no Metacritic, vai um pouco melhor, com nota 3.6 da crítica e 5.5 dos usuários (numa escala de 0 a 10).
Indo contra a corrente, quero sustentar que o filme é bem melhor do que esta vasta defenestração crítica sugere e que, a despeito de seus defeitos, adquiriu uma renovada atualidade após os acontecimentos pandêmicos de 2020-2022.
A imaginação de um futuro distópico ou mesmo apocalípico, e a concretização disto em uma obra fictícia compartilhável pelas massas e comercializável pela indústria do entretenimento, não era nada de novo quando surgiu Aeon Flux, uma investida da MTV em parceria com animadores sul-coreanos explorando o filão da sci-fi distópica. Mas havia sim algo de novo na série criada por Peter Chung: o que eu estou chamando aqui de apocalipse viral.
Através de 3 temporadas, perfazendo 16 episódios, Aeon Flux trouxe à televisão um pesadelo-movido-a-vírus em meio a uma época que intensificava a quantidade de conexões à Internet e onde a Cultura Hacker também crescia em proeminência. A protagonista era ela mesma uma espécie de heroína hacker, de vírus invasor, que adentrava a fortaleza dos tiranos para bagunçar a Ordem nefasta, sem economia de meios violentos e sanguinários.
Aeon Flux carregava uma estética cyberpunk, estava alinhada com a frenética linguagem MTV repleta de cortes e nos afundava num pesadelo animado desnorteante, assustador. Peter Chung lançava-nos vários desafios cognitivos que pareciam em desacordo com os dogmas da TV normal e da sociedade do espetáculo que adora entregar conteúdos palatáveis e já mastigadinhos, em sintonia com a preguiça mental de uma plateia acostumada a não precisar pensar muito diante das telas. Aeon Flux era um quebra-cabeça, um puzzle que desafiava a inteligência ao mesmo tempo que fascinava os sentidos com sua audiovisualidade acachapante.
À época que Aeon Flux estreou no Brasil, eu vivia plugadão na MTV, devorando programas como Barraco, Gás Total, Lado B, Na Cara, Beavis and Butthead, South Park etc. A MTV propiciava aulas ininterruptas de produção musical e videoclíptica contemporânea (foi assim que fui ficando fissuradão em grunge), e também oferecia cursos intensivos de sexologia, de erotismo e de subversão. Se me perguntassem sobre meu canal de televisão predileto, eu respondia que era este sem dúvida (e arrematava chamando a Globosta de golpista – “a verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura” etc.).
Neste contexto, me lembro de ter ficado vivamente impressionado quando aquele desenho estranhaço começou a passar: Aeon Flux era um OVNI televisivo tão bizarro que dava a sensação de que a MTV estava na vanguarda da contracultura. Corajosamente explorando vertentes do audiovisual que eram pouco palatáveis, que pareciam querer expandir horizontes do público para além da papinha enjoativa da TV comercial. A quase totalidade dos críticos que li sustenta que o filme não chega aos pés da série animada.
No Screen Rant, sugere-se: “Peter Chung’s Aeon Flux is an ambiguous and complex dystopian sci-fi series that combines elements of Gnosticism, erotic fetishism, horror, psychological drama, psychedelia, biopunk, political intrigue, and transhumanist philosophy. Aeon Flux ran from 1991 to 1995, and its creative influences can still be found in more recent sci-fi works such as Netflix’s Black Mirror and Love, Death, and Robots. (…) Meanwhile, the 2005 Aeon Flux movie takes a few key elements from the original series and ultimately tells a dystopian sci-fi love story with a happy ending. While the film does manage to adapt some of the original series’ bizarre visuals, and the production design is impressive, in the end, it barely scratches the surface of the source material. Rather than an adaptation of Peter Chung’s highly influential animated masterpiece, the 2005 Aeon Flux movie looks and feels more like a forgettable tribute to 1999’s The Matrix, which started the trend of combining dystopian sci-fi, martial arts, and philosophy in Hollywood’s turn-of-the-century blockbuster films.”
O filme projeta o ano de 2011 d.C. como o tempo de uma catástrofe que quase extinguiu a humanidade: 99% dos animais humanos foram dizimados por uma pandemia viral, e o que restou do homo sapiens agora vive em um enclave supostamente utópico chamado de Bregna, fundado e governado pelo clã dos Goodchild. Após 400 anos de um regime chefiado pelos Goodchild, no ano de 2400 d.C. e pouco, uma guerrilha chamada Monicans se levanta no que parece ser a última cidade da face da Terra para tentar derrubar um governo que produz cotidianamente o “desaparecimento” de pessoas e pratica uma onipresente vigilância “orwelliana”. Uma das primeiras missões da guerrilheira Aeon Flux, no filme, consiste em sabotar o sistema de surveillance do Estado – um elemento também atualíssimo e que se conecta com os debates atuais acerca do capitalismo da vigilância e do colonialismo de dados.
A realização deste filme, uma mega-produção hollywoodiana, dirigida e estrelada por mulheres, envolveu o Estúdio Paramount em parceria com a MTV, empregando a sex symbol e também excelente atriz Charlize Theron, trazendo outro grau de “democratização” da saga Aeon Flux. A animação era “cabeça” demais, estranha demais, para de fato tornar-se pop. Foi alvo de um hype de nicho, foi um fenômeno indie, mas penso que o filme tinha o intento de Matrixizar o fenômeno Aeon Flux. Mas o filme flopou no intento e não atingiu de fato status de arrasa-quarteirão.
Trata-se de mais um filme de super-heroína com protagonista mulher – como são WonderWoman (Mulher Maravilha), Mulher Gato ou Tomb Raider – mas que possui algo digno de atenção: há um vírus no cerne de Aeon Flux, uma extinção em massa da vida humana no planeta, o que faz da obra singularmente apta a dialogar com movimentos emergentes como Extinction Rebellion.
Há sexismo? Há exploração excessiva das curvas, seios e bunda de Charlize? Claro que sim: em muitos aspectos, o filme torna-se obcecado em revelar toda a sexyness de Theron em cenas de ação que exploram o filão aberto pela trilogia das Wachowski. Há todo um erotismo rolando no filme – que nunca atinge a pornografia propriamente dita – e, assim como na animação, Aeon Flux é descrita como uma femme fatale, uma mulher que é sexy também pela mistura de Eros e Tânatos, uma encarnação da heroína gostosa who breaks bad. Há algo da cultura armamentista e masculinista dominante nos EUA aqui: Aeon Flux dispara bala como uma Ramba, mata exércitos inteiros em uma cena de 5 minutos. Chega a prenunciar a Beatrix Kiddo que Tarantino utiliza nos dois filmes de Kill Bill.
Em vários momentos do filme, seminua ou vestida com roupas coladinhas, os modelitos parecem especialmente desenhados para expor o corpo deslumbrante de Charlize Theron e as cenas chegam a parecer uma filmagem de desfile de moda: Aeon Flux na passarela. Os corpos femininos, nas cenas de ação, produzem acrobacias que, para além do fascínio que produzem pela perícia técnica com que foram realizadas, também sensualizam esta luta guerrilheira, seduzem de algum modo para uma identificação com a figura destas mulheres que tentam penetrar na Cidadela onde se encastela o poder da realeza hi-tech dos Goodchild.
O nome da nossa heroína-guerrilheira, Aeon Flux, é obviamente um nome fantasia, como Batman ou Superman, e por detrás há uma pessoa (ainda que fictícia), como Bruce Wayne ou Clark Kent, neste caso a enigmática “Katherine”. No enredo facilmente acompanhável do filme – bem diferente da narrativa labiríntica e fragmentária, confusa e desnorteadora da séria – Aeon Flux tem uma missão clara: matar o Grande Líder, Trevor Goodchild, após o regime por ele chefiado ter assassinado sua irmã Una Flux; porém, Katherine vai atrapalhar o cumprimento desta missão por seu alter-ego Aeon Flux.
Esta cisão entre Katherine e Aeon, entre a pessoa e seu duplo, transforma a dramaticidade do filme: a protagonista não é uma guerrilheira Monican convicta, mas uma entidade em crise identirária, com vagas premonições de que há algo muito errado consigo, e que chega lembrar a andróide que pensa que é humana em Blade Runner e por quem o personagem de Harrison Ford se apaixona. Nossa protagonista carrega uma ambiguidade: será bandida ou mocinha? do bem ou do mal? uma guerrilheira que vai derrubar o regime, ou a traíra que vai cair na cama do opressor? Além disso – alerta: spoiler! – o filme também acaba por bagunçar os limites entre humanos e clones, como bem apontado por esta síntese do site Alchetron:
“Everyone in Bregna is revealed to be a clone, grown from recycled DNA. With the dead constantly being reborn as new individuals and bearing partial memories of their previous lives, their troubling dreams have increased. Cloning was required because the antidote to the virus made humans infertile. Trevors ongoing experiments were attempts to reverse the infertility….”
Os críticos que tacaram pedras no filme parecem não ter enxergado o quando o Aeon Flux de Karyn Kosama bagunçou as linhas fronteiriças simplistas entre bandidos e mocinhos mas também entre humanos e clones. A personagem ganha em densidade psicológica, em humanidade (apesar de seu caráter de clone cyberpunk, enfurecida dentro da fortaleza da elite que comanda Bregna), ao oscilar entre o intento de assassinato premeditado de Trevor Goodchild e a tentação de tornar-se uma aliada e uma amante dele, refazendo a teia que uniu, gerações antes, o Trevor original com a Katherine cujo DNA serviu à “confecção” de Aeon.
Trevor Goodchild, ao deparar com Aeon apontando-lhe uma arma e prestes a apertar o gatilho, chama-lhe de Katherine e esta palavra mágica desarma a assassina, fazendo vir à tona a mulher que desconhece seu passado mas que sente haver alguma estranha conexão afetiva com o alvo que lhe ordenaram assassinar. A guerrilheira cede espaço à mulher em busca da identidade perdida – aquela que tinha a missão de assassínio torna-se a amante tórrida de Trevor, em busca de decifrar o mistério insondável de sua identidade.
Ao ser flagrado numa noite de tórridas transas com Katherine/Aeon Flux, o que não escapa ao aparato de vigilância mais-onipresente-que-Deus da Citadela, Trevor Goodchild vai cair em desgraça diante do círculo de elite que domina Bregna. Seu irmão, Oren Goodchild, vê aí uma oportunidade de passar a perna no irmão e tomar o poder. Diante das cenas do Grande Líder trepando com a invasora guerrilheira Katherine/Aeon Flux, Oren declara que Trevor é um criminoso e será tratado como tal. A narrativa vai ganhando os contornos trágicos de uma Antígona futurista (na clássica peça teatral de Sófocles, a filha de Édipo, Antígona, vive muitos dilemas e decisões diante da guerra entre seus irmãos Etéocles e Polinice).
O filme Aeon Flux pode até ter flopado junto à crítica e não ter sido o estouro de bilheteria que seus produtores imaginaram, mas será que merece simplesmente ser jogado na lata de lixo da história como apenas um evanescente produto cultural que apenas merece ser esquecido? Por tudo que argumentei acima, julgo que o filme merece um certo grau de reconsideração pois se trata de uma daquelas obras fílmicas que funciona “em camadas”: em uma camada mais superficial, é um filme sci-fi de ação com atriz gostosa lotado de tiro; mas em uma camada mais profunda, sonda os pesadelos despertos que cada vez mais são os nossos: o apocalipse viral, a possibilidade de extinção, os problemas da bioética, os desafios da tecno-ciência envolvidos em processos como o desenvolvimento de vacinas e a clonagem de organismos.
No fim do filme, os muros do enclave são explodidos e a protagonista sugere que o caminho para o futuro está em re-adentrar na Natureza que a pseudo-utopia de Bregna havia prendido para fora. Bregna era um enclave “utópico” onde estava vigente a tão distópica tirania Goodchild que desaparecia com os corpos divergentes e aniquilava qualquer possibilidade de privacidade com sua onipresente surveillance. A guerrilha de que Aeon Flux participa acaba sendo uma invasão viral deste sistema falsamente utópico, uma espécie de hackeamento de um regime apodrecido, e este estranho happy end que o filme nos entrega em meio a gramados repletos de cadáveres e escombros, nem é tão happy assim considerando a extensão da destruição e devastação produzida na tela diante de nossos olhos.
Mas se há alguma esperança delineada no muro explodido do enclave de Bregna, esta está no convite a adentrarmos de novo a natureza selvagem, na conclamação para uma re-conexão com a natureza. O que faz do filme Aeon Flux, em seu desfecho (o que nenhum crítico que conheço notou ou frisou!) uma obra singularmente afinada com as doutrinas e movimentos sociais baseados no Rewild, da re-selvagização, do re-florestamento, da re-naturalização do humano, defendidas de maneira cada vez mais disseminada no mercado editorial e sustentadas com muita persuasão por pensadores contemporâneos de primeira importância como David Attenborough, George Monbiot e Roman Krznaric. Parafraseando um dos clássicos do rock’n’roll, “Born to be Wild” do Steppenwolf, podemos dizer que Aeon Flux acaba concluindo que sua missão na Terra seria uma espécie de born to rewild (nascida para re-selvagizar).
Publicado em: 19/07/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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